Pessoas com deficiência são aquelas que têm
impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as
demais pessoas. Essa é a definição utilizada na Convenção sobre os Direitos da
Pessoa com Deficiência (artigo 1º), aprovada pelo Decreto Legislativo nº
186/2008. Mas, para a legislação brasileira, a pessoa com deficiência é aquela
incapacitada para a vida independente e para o trabalho – um conceito
restritivo que está na Lei Federal nº 8.742/93 (Lei da Assistência Social -
LOAS).
A referida Convenção é norma de direito fundamental,
que tem aplicabilidade imediata, como determina o artigo 5º, § 1º, da
Constituição da República - CR/88.
Neste norte, o judiciário precisa refletir o que
está em discussão são os direitos fundamentais da pessoa portadora de
deficiência. Ademais, inequívoca a ligação entre os direitos das pessoas com
deficiência e o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III,
CR/88).
A limitação do valor da renda per capita (por cabeça) familiar não deve ser considerada a única
forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Uma vez que representa
apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade da pessoa.
O presente aresto demonstra a evolução do judiciário
ao interpretar os direitos sociais de acordo com a Constituição da República de
1988 e beneficiar a pessoa com deficiência:
PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO
ASSISTENCIAL. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA. PRETENSÃO DE AFASTAMENTO DA RENDA PER
CAPITA SUPERIOR A ¼ DO SALÁRIO-MÍNIMO COMO ÚNICO CRITÉRIO PARA AFERIÇÃO DA
MISERABILIDADE. RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 567.985/MT. QUESTÃO DE ORDEM Nº 20 DA
TNU. INCIDENTE CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Prolatado acórdão pela
Turma Recursal da Paraíba, a qual negou provimento ao recurso da parte autora,
mantendo pelos próprios e jurídicos fundamentos a sentença que julgou improcedente
o pedido de concessão de benefício assistencial ao deficiente, ao argumento de
que a renda per capita é superior a ¼ do salário-mínimo vigente. 2. Incidente
de Uniformização de Jurisprudência interposto tempestivamente pela parte
autora, com fundamento no art. 14, § 2º, da Lei nº 10.259/2001. 3. Alegação de
que o acórdão recorrido diverge do entendimento da Turma Recursal do Mato
Grosso (processo 2008.36.00.700052-6, Rel. Juíza Federal Adverci Rates Mendes
de Abreu), bem como do STJ (REsp nº 868.600/SP, Min. MARIA THEREZA DE ASSIS
MOURA), segundo os quais o critério econômico de ¼ do salário-mínimo não é
absoluto. 4. Incidente inadmitido na origem, sendo os autos remetidos a esta
Turma Nacional após Agravo. 5. O Douto Subprocurador-Geral da República oficiante
nesta TNU apresentou parecer no sentido do provimento do Incidente, para ver
reconhecido o direito do requerente ao benefício assistencial pretendido. 6.
Verifico inexistir a necessária similitude fático-jurídica entre o julgado do
STJ e o acórdão recorrido. Isso porque naquele é admitida a utilização de
outros meios de prova quando a renda per capita ultrapassa o limite de ¼ do
salário-mínimo, sem ser tal análise, todavia, uma imposição, mas sim uma
faculdade do julgador. E esse entendimento tem sido o adotado por este
Colegiado, ex vi, PEDILEF nº 0511565-82.2008.4.05.8200 (Relator: Juiz Federal
Janílson Bezerra de Siqueira, D.O.U:23/06/2013) e PEDILEF nº
0509039-71.2010.4.05.8201 (Relatora: Juíza Federal Ana Beatriz Vieira da Luz
Palumbo, D.O.U: 16/08/2013). 7. Entretanto, com relação ao paradigma da Turma
Recursal de Mato Grosso refaço a leitura de outrora (pois já decidi no sentido
de que o julgado citado não impõe obrigatoriedade de se analisar outros meios
de prova), e reconheço a divergência jurisprudencial que autoriza o
conhecimento do Incidente. Deveras, o acórdão trazido como paradigma disciplina
que "(...) não obstante a renda per capita auferida ser superior ao limite
estabelecido na LOAS, nossa
jurisprudência é farta no sentido da concessão do benefício para pessoas cuja
renda seja superior ao máximo exigido, uma vez que deve ser considerada para
fins de averiguação do estado de miserabilidade toda a estrutura social em que
está inserido o postulante do benefício" (grifei), e o acórdão recorrido
considerou apenas a questão de renda, a despeito de haver produzido prova oral
(não valorada em tempo algum). Encontra-se, pois, configurado o dissídio
jurisprudencial: o juiz é obrigado a analisar a miserabilidade por outros
elementos existentes nos autos quando a renda per capita supera o limite do
artigo 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93? 8. Tendo em vista os princípios
elementares do Processo Civil, poder-se-ia responder pela negativa. Deveras, o
sistema processual pátrio consagra o princípio da persuasão racional do Juiz,
também conhecido como o princípio da livre convicção motivada, com o que o
magistrado forma livremente o seu convencimento (artigos 131 e 461, do CPC). Os
professores das Arcadas da Universidade de São Francisco/USP em obra clássica (CINTRA,
Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pelegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel.
"Teoria Geral do Processo", 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2008, p. 73), lecionam que esse princípio "regula a apreciação e avaliação
das provas existentes nos autos, indicando que o juiz deve formar livremente
sua convicção. Situa-se entre o sistema da prova legal e o julgamento secundum
conscientiam". 9. Contudo, o recente julgamento do Recurso Extraordinário
nº 567.985/MT, que teve como Relator para acórdão o Ministro Gilmar Mendes, de
repercussão geral, onde o Supremo Tribunal Federal declarou incidenter tantum a
inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93, incita nova
reflexão e manifestação deste Colegiado Uniformizador a respeito do tema. 10. Entendo
não ser aceitável a não valoração das provas constantes nos autos e fundamentar
a procedência ou improcedência da demanda apenas em critério quantitativo de
renda que foi declarado inconstitucional pelo Excelso Tribunal em repercussão
geral. E isso justamente porque o nosso sistema não é o da tarifação de provas,
e tampouco permite o julgamento de forma livre e arbitrária, mas sim o de
princípio da persuasão racional, conforme alhures exposto. 11. Assim, diante da
nova análise a respeito da matéria, levada a efeito no mencionado Recurso
Extraordinário nº 567.985/MT, de onde copio trecho significativo,
"Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização
decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e
jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos
utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por
parte do Estado brasileiro), a miserabilidade da parte, para fins de concessão
do LOAS, deverá levar em consideração todo o quadro probatório apresentado pela
parte e não unicamente o critério legal constante do § 3º do art. 20 da Lei nº
8.742/93, repita-se, agora havido por inconstitucional pela Augusta Corte
pátria, mercê da progressão social e legislativa. 12. Incidente de
Uniformização de Jurisprudência conhecido e parcialmente provido para firmar o
entendimento de que há a necessidade de valoração das provas produzidas nos
autos para a aferição da miserabilidade mesmo quando a renda per capita seja
superior a ¼ do salário mínimo, posto não ser este o critério único para
aferição da miserabilidade. Retornem os autos à Turma Recursal de origem para
adequação do julgado conforme a premissa jurídica ora fixada.
(TNU - PEDILEF: 05042624620104058200 , Relator: JUÍZA FEDERAL KYU SOON LEE, Data
de Julgamento: 13/11/2013, Data de Publicação: 10/01/2014)
Deste modo, essa delimitação do valor não deve ser
tida como um único meio de se atestar a condição de miserabilidade do beneficiado,
até porque na maioria dos casos a pessoa com deficiência é menor e totalmente
dependente de terceiro para os atos mais básicos da vida social e civil.
Diante do compromisso constitucional com a dignidade
da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições
básicas de subsistência física, esse dispositivo (LOAS) deve ser interpretado
de modo a amparar irrestritamente o cidadão social e economicamente vulnerável.
Franklin Brito, advogado com OAB/SP nº. 299.010 – franklinbrito@gmail.com. De acordo
com Provimento nº. 94/2000 da OAB.